Brasil

“Não será a questão partidária que terá relevância em 2022”, diz Paulo Hartung

Entre os aprendizados que Paulo Hartung destaca de sua extensa trajetória política estão a tranquilidade e o entusiasmo que se mantêm ativados desde que deixou o governo do Espírito Santo, seja para definir uma linha de ação política para 2022, costurada junto ao ex-presidente do BC Armínio Fraga e o apresentador Luciano Huck, seja no otimismo com que traduz o momento brasileiro, segundo ele, ímpar para a realização de reformas estruturantes.

Em visita ao FGV IBRE, Hartung, atualmente sem partido, compartilhou com a Conjuntura Econômica a esperança de modernização vinda de jovens interessados em capacitar-se para uma carreira política, que acompanha como conselheiro do movimento civil RenovaBR, afirmando que os grandes projetos que inspirarão esse grupo hoje não estão nas mãos de partidos, mas de iniciativas dentro do próprio setor público, que devem ser reconhecidas e disseminadas. “Basta ter humildade em buscar as boas práticas e pedagogia para valorizá-las, pois isso pode mudar o país”, declarou.

Conjuntura Econômica

O senhor tem declarado que considera cedo para se falar das eleições presidenciais de 2022, mas que o importante para uma candidatura que venha quebrar a polarização entre governo Bolsonaro e PT é evitar o estigma em torno da palavra centro. A que partido o senhor considera que um candidato poderia se aliar para representar essa alternativa, e que a sociedade não relacionasse à ideia de corrupção e política antiga?

“Sobre vida partidária, quero dizer que um país que tem mais de 30 partidos não tem representação partidária. O próprio presidente da República, que se elegeu por um partido, está fundando outro. Então, não é isso que vai ter relevância em 2022. Talvez no futuro, depois de uma reforma do sistema político, haverá mudanças que vão impactar no médio e longo prazo. Agora mesmo, por exemplo, temos a cláusula de barreira. Ainda com essa proposta tímida que foi aprovada no Congresso, terá impacto. Talvez muito maior impacto terá o fim das coligações proporcionais, que já se refletirão nas eleições municipais do ano que vem, para uma reorganização partidária no médio prazo. Mas, grosso modo, não será em 2022 que a questão partidária será relevante. Entre os próprios partidos que temos pode-se produzir uma ou mais de uma candidatura que represente esse campo que vai da centro-esquerda preocupada com a questão social no Brasil até os liberais reformistas. Mas, por enquanto, é difícil saber. Veja, na eleição passada o eleitor fez voto útil no primeiro turno. Confesso que eu nunca tinha visto isso na minha vida.

Na tradição as democracias modernas, voto útil é no segundo turno. Então, o que as lideranças políticas não têm capacidade de organizar, o eleitor está organizando. Assim, a questão é ter muita tranquilidade, muita paciência. Talvez a tarefa fundamental neste momento não seja inventar candidato, mas melhorar o debate no Brasil, que hoje é ralo, é superficial. Precisamos subir o sarrafo do debate das políticas públicas, que trate do rumo do nosso país. É a nossa tarefa estratégica número 1 neste momento. Além da minha vida pessoal, privada, hoje também estou tentando dar minha contribuição para isso. Para diminuir as agressões que são meio improdutivas, mas fazem parte desse tempo que estamos vivendo no Brasil e no planeta, e tentar levar o embate para o campo dos projetos, das propostas, das ideias. Acho que a gente tem que fazer um esforço pessoal e intelectual para isso”.

O senhor diz que, em sua viagem pelo Brasil, tem conhecido muitos jovens interessados em política. Em tempos considerados de legendas fracas em projetos e de falta de lideranças de qualidade, onde o senhor considera que se deve ancorar a disposição desses jovens?

“Tem muita coisa nova e interessante ocorrendo neste imenso país. Como mencionei, há uma estrutura partidária fragmentada, vazia do ponto de vista programático. Tem um amigo meu que fala que a estrutura partidária perdeu tanta relevância no campo das ideias e projetos que se assemelha a cartórios de registro de candidaturas, e acho que é uma imagem muito certeira do que virou o quadro partidário brasileiro. Por outro lado, você tem um vazio de liderança no país. O Brasil formou muita gente de todas as posições políticas no entorno de 1964, com os diversos debates de reformas e contrarreformas. Se observar os quadros políticos, verá que muita gente nasceu nesse entorno. Depois veio o período militar, censura, prisões, exílio, um conjunto de medidas arbitrárias, seguido do processo de redemocratização. Foi na redemocratização que o país voltou a formar lideranças, em todas as áreas, em todos os pensamentos políticos. Foi daí que nasci como liderança política, do movimento social, do movimento de juventude estudantil. Mas de lá para cá a gente perdeu esse ímpeto.

Houve um vazio. Muita gente, por exemplo, que apoiava meu trabalho no Espírito Santo, o fazia a distância. Queria ser engenheiro, médico, empreendedor, mas não ligar sua vida à atividade política, de mandatos, e assim por diante. Hoje, entretanto, das coisas boas que estão acontecendo no Brasil é que em todo lugar que eu vou os jovens querem participar. Os movimentos cívicos de formação de lideranças não estão dando conta da pressão para cursos de novos líderes políticos. Movimentos como o RenovaBR, o Livres e outros hoje estão dando contribuições importantes para colocarmos uma meninada arejada – independentemente se vai militar à direita, à esquerda ou ao centro do espectro político, usando a velha linguagem – mas que o faça com boa formação, com capacidade de representar o pensamento, de negociar, de debater. Na vida, parte importante disso é treinamento. Você não nasce com isso. Não é questão só de vocação. Boa parte é treinamento, você aprende a fazer. No RenovaBR, este ano se inscreveram 31 mil jovens do Brasil inteiro, meninos e meninas. Selecionamos 1,4 mil. Formamos 1.070 jovens. Há uma pressão para que se abra nova turma agora no início do ano”.

O que esses jovens aprendem?

“Tudo que você imaginar. Até fazer campanha. Tem gente de todo pensamento e gente em formação de pensamento, pois são muito jovens (entre os deputados federais eleitos em 2018 que passaram pelo RenovaBR estão Tábata Amaral (PDT-SP), Felipe Rigoni (PSB-ES)], Joênia Wapichana (Rede-RR), Luiz Lima (PSL-RJ) e Tiago Mitraud (Novo-MG). Tivemos alunos de mais de 500 municípios; dividimos grupos por região e escolhemos ponto focal em cada uma para fazer o encontro presencial, além da parte feita online, a distância. Tivemos um índice de aproveitamento extraordinário.

Isso é um bom sinal. Mas vocês perguntaram: se a referência não está nos partidos, onde encontrá-la? Hoje elas existem no próprio setor público. Políticas públicas sendo desenvolvidas, ações que são inspiradoras. Por exemplo, quando estava governando o Espírito Santo, e pesquisamos a educação, fomos olhar Sobral. É inspirador o que eles fizeram, especialmente porque é no interior do Ceará. Com pouco dinheiro, eles mudaram a educação fundamental de um município. Também fomos olhar em Pernambuco a experiência do ensino médio. De uma educação integral, em tempo integral. Não se trata só de escola de manhã e de tarde, mas de visão de formação do jovem para a vida. Tanto que tem uma disciplina que se chama projeto de vida. Essa experiência nasceu em Pernambuco ainda no governo Jarbas Vasconcelos (1999-2006), vinda do ex-executivo da Philips Marcos Magalhães. Ele voltou na escola onde estudou (Ginásio Pernambucano, onde também foram alunos os escritores Ariano Suassuna e Clarice Lispector), se assustou com o que viu, e resolveu fazer uma intervenção. Nem ele tinha a dimensão do que tinha que ser feito, por isso buscou profissionais, com uma visão multidimensional, para desenvolver um modelo de escola que deu certo. Levamos essa experiência para o Espírito Santo.

No campo do ensino, há outros exemplos. Veja o Todos pela Educação (do qual Hartung é conselheiro), levando boas práticas e boas experiências para todo o Brasil. Inclusive batendo à porta do Ministério da Educação, para ver se abre. Com o Instituto Unibanco levamos ao Espírito Santo um programa chamado Jovens de Futuro. Com o Instituto Natura, levamos o regime de colaboração que foi implantado no Ceará. Em que consiste? Em integrar as redes estadual e municipais, para eliminar sobreposição, gasto em duplicidade, ineficiência. E assim por diante”.

São coisas distantes dos programas político-partidários?

“Sim, mas mão será no futuro, na minha modesta visão. Está aí. Por exemplo, usei o modelo de recrutamento da Fundação Lemann para recrutar meus superintendentes educacionais. Diretor de escola é figura fundamental na condução do ensino. Por vezes escolas que têm o mesmo material didático, pedagógico, o mesmo projeto de arquitetura, não têm o mesmo nível de desenvolvimento. Aí muitas vezes você percebe como a liderança do diretor fez a diferença – bem como os professores, pois são insubstituíveis. Então isso é que muitas vezes não vemos num projeto de partido político. Acho que teremos no futuro, mas já temos na sociedade, então temos que ir atrás.

Sempre digo que não tenho medo de copiar as coisas. E de dar crédito. Mostrar que se buscou experiência em outro estado cria uma conscientização. Ninguém precisa ser dono de projeto. Mas, se vamos buscar isso no Ceará, nosso desafio é fazer melhor que eles. Vamos colocar como meta fazer melhor do que Pernambuco faz. Se procurar na área de segurança pública, em inovação, encontraremos experiências espalhadas pelo Brasil afora. E estou falando de setor público, de coisas inspiradoras. E, como mencionei com exemplos, não tenho problema em buscar o setor privado.

Coloquei organização social para administrar hospital e deu muito certo. Mas tem que saber tomar conta, senão repete-se o erro que cometeram no Rio de Janeiro. Enfim, tem muita coisa que ilumina um bom caminho no setor público brasileiro. Basta ter humildade em buscar as boas práticas e pedagogia para valorizá-las, pois isso pode mudar o país.

Ainda que se concorde sobre a necessidade de subir o sarrafo do debate político, a falta de pressa em anunciar um nome também não deriva da preocupação em preservar possíveis candidatos, dada a agressividade do jogo político? A notícia sobre o financiamento do BNDES para a compra de uma aeronave da Embraer pelo apresentador Luciano Huck, por exemplo, não pareceu casual?

“Não havia nenhum pecado na contratação dessa linha de crédito. O BNDES em vários momentos foi proativo, digo isso porque fui diretor, e quando estava lá ele foi proativo no desenvolvimento de uma indústria aeronáutica no Brasil. Há de se lembrar que naquele momento disputávamos o mercado de linhas regionais com a Bombardier, e o governo canadense mostrou-se muito aguerrido para abrir mercado para a Bombardier. E o BNDES cumpriu seu papel de banco de fomento. De uma forma ousada, Luiz Carlos Mendonça de Barros (presidente do BNDES de 1995 a 1998), uma pessoa ousada que na minha opinião teve uma passagem notável à frente do BNDES, foi à luta. E foi isso que viabilizou à Embraer colocar seu produto de melhor qualidade, apoiando seu financiamento nos diversos mercados. E a Embraer deu um salto importante a partir daí. O programa que tivemos no Brasil para aquisição de jatos particulares é comum mundo afora. É prática. Está lá a França cuidando do seu, os americanos cuidando do deles, e assim por diante. Foi transformado devido à muita política de baixa qualidade”.

O senhor mencionou sua passagem pelo BNDES. Como avalia o atual enxugamento do banco?

“Viesse qual governo fosse, teria que reformular o BNDES, porque a política que foi praticada com o banco foi absolutamente equivocada. Captar dinheiro no mercado para subsidiar crédito e escolher para quem dar esse dinheiro é um equívoco. Mas não adianta tirar o BNDES tirar do erro em que estava e colocar em lugar nenhum. Evidentemente precisamos de um banco de fomento no país. O que precisa agora é focalizar (a entrevista aconteceu antes da divulgação do Plano Trienal do BNDES). Por exemplo, a questão da Amazônia poderia ser um foco novo. Como desenvolver a bieconomia da Amazônia? Se estivesse no banco hoje, proporia um seminário para reunir especialistas e discutir esse tema. Está claro para todo mundo que essa floresta em pé produz serviços ambientais para nosso país e os países vizinhos. Por exemplo, nosso regime de chuva é o que permite duas safras agrícolas – em alguns lugares, até três – por ano. Isso tem relação com a floresta em pé. Qual o desafio? Desenvolver a economia da região para que seus habitantes – mais de 22 milhões –, possam melhorar sua vida, para que possamos melhorar o IDH dessa área. E aí abre-se todo um universo de bieconomia para desenvolver. Algumas coisas estão andando, com a ajuda de empresas. Mas esse poderia ser um foco. Se o mundo olha para a Amazônia com preocupação, vamos trazer o dinheiro do mundo para investir em desenvolvimento sustentável.

O BNDES sempre dialogou bem no mundo, e pode ser um importante instrumento para isso. Também é preciso redirecionar seu papel. Não se pode imaginar que ele volte a ser o banco dos campeões nacionais. Jogamos dinheiro na lata de lixo. Não adianta desenhar um modelo de indústria naval, sei lá quantas vezes o Brasil já testou essa possibilidade e jogou dinheiro fora. O banco pode dar uma contribuição importante se tiver uma visão integradora da nossa economia à economia mundial, à formação de cadeias produtivas. Acho que o banco tem muito a fazer. Gosto do corpo técnico.

Acho que o BNDES pode ser muito relevante. Mas, voltando à questão do tempo para candidaturas, essa questão do BNDES não interferiu no meu pensamento. Digo isso com muita tranquilidade. Pode pesquisar na internet o que penso sobre campanha eleitoral. Eu nunca tive pressa. Nunca fui açodado para discutir processo eleitoral. Sempre achei que todo mundo que quer largar muito na frente larga na hora errada e queima a largada. Se o eleitor do Rio sequer está discutindo quem vai ser prefeito da cidade eleito no ano que vem, imagina se o eleitorado brasileiro está olhando uma coisa que está lá na eternidade”.

Como mensurar corretamente esse prazo?

“Três anos é uma eternidade na política. As pessoas muitas vezes trabalham o tempo da política como se fosse o de outras atividades humanas. Mas a política tem um tempo próprio. Existe a hora certa. Observe os processos eleitorais passados: quais fatos foram relevantes faltando três anos, dois anos, para a eleição? Nenhum. Se não emplacar o prefeito de tal cidade, não tem nada a ver. O doutor Ulysses (Guimarães, 1916-1992) disputou a Presidência da República cheio de prefeitos, vereadores, deputados estaduais, federais, senadores, e teve 4,5{5a95de09593b95e4f7b9f890b710ae9ebd7b4b5f9a97083bff113c3a371bdaf8} dos votos. O PMDB era uma potente máquina, que não produziu o efeito necessário. Então, o que leva a essa minha atitude? Experiência, treinamento de vida. Tenho 62 anos de idade, só de eleições que disputei foram oito, sem contar o tempo de líder estudantil, e as campanhas que coordenei de outros candidatos. É muita estrada para conhecer um pouco as coisas. É evidente que tenho a humildade de saber que em cada processo a gente aprende. E que, cada vez que a gente acha que sabe muito estamos na antessala de um tropeço, de um fracasso. Mas o tempo é algo mais ou menos claro num processo como esse. É só isso. Não há paranoia, nem intenção de proteger A, B ou C. Nem sabemos a quem proteger, pois não sabemos quem será candidato. Tem aí alguns pretendentes se mexendo, vamos ver o tamanho que fica. Porque se tem uma coisa que o tempo ajuda é dar a dimensão de quem tem escala e quem não tem. Para uma eleição nacional, precisa ser conhecido no Acre, no Rio Grande do Sul, no Nordeste. Precisa ter um nível de conhecimento importante para largar com competitividade. Depois, ganhar a eleição ou perder é da vida.

No seminário de Análise Conjuntural, o senhor mencionou que em 2019 o Brasil contou com uma janela de oportunidade única para realizar reformas. Como foi o aproveitamento dessa janela, e do que dependemos para que se mantenha aberta em 2020?

“Hoje temos o melhor ambiente, do ponto de vista da sociedade, desde a redemocratização. Falar isso é passar por dentro da implantação do real. Ali também se criou um momento interessante com a sociedade, mas o de hoje supera aquele. O ambiente a que me refiro é o propício a fazer o que se precisa, e o Brasil precisa ser reformado. Todas as pessoas de bom senso sabem disso. Esse Estado que a gente constituiu precisa ser refundado. Ele é um Estado caro – ou melhor, caríssimo –, para os padrões do que temos de base econômica, e entrega muito pouco para a sociedade. Pior do que ser caro e entregar pouco, é que ele na verdade é um instrumento de concentração de renda em um país que, infelizmente, tem uma marca de desigualdade horrorosa. Então, insisto, precisamos refundar o Estado brasileiro. E, para isso, é preciso reestruturar as carreiras dos funcionários públicos, introduzir avaliação de desempenho. Essas carreiras não podem ter formato retangular, em que as pessoas são promovidas independentemente do que estão fazendo.

Têm que ter um formato mais triangular, onde serão promovidos os com melhor desempenho em suas carreiras, para criarmos estímulo ao trabalho do setor público. A ambiência que estamos vivendo hoje permite fazer uma reforma dessa. Como permitiu a da Previdência. É isso que eu chamo de ambiência. Não é que o povo esteja vivendo seu melhor momento, mas que está aspirando viver tempos melhores, e de certa forma está autorizando que as coisas sejam feitas. Momento rico. Foi aproveitado durante 2019? Parcialmente. Poderia ter produzido muito mais. Por que foi parcialmente aproveitado? Porque faltou um pouco de coordenação política, de exercício de liderança junto à sociedade, ao Congresso. Quando se votou a Previdência no segundo turno na Câmara, já se poderia ter encaixado uma segunda reforma. Perdemos um tempo danado até terminar a votação, e quando se terminou, foram colocadas três reformas de uma vez só”.

Que reforma, em sua opinião, teria chance de ser aprovada na sequência da Previdência?

“Se tivéssemos modulado uma cadência, seria absolutamente viável ter aprovado uma reforma administrativa que estamos chamando de reforma de recursos humanos no setor público, ou tributária. Enquanto estivéssemos com a Previdência tramitando no Senado, no meio do ano já poderíamos ter começado com uma destas na Câmara. Mas querer depois aprovar duas ou três coisas simultaneamente, minha experiência mostra que não dá muito certo. Tem que criar uma prioridade, trabalhar essa prioridade, virar a página dessa prioridade e seguir em frente. De qualquer forma, há coisas positivas. Estamos terminando o ano avançando no marco regulatório do saneamento, isso é uma coisa relevante.

A população pode não ter uma percepção clara, mas são 100 milhões de habitantes do nosso país que não têm coleta e tratamento de esgoto. A imprensa ajudou tanto na reforma da Previdência quanto na tramitação do marco regulatório do saneamento, e temos que fazer isso mesmo: criar campos de convergência no nosso país. Amadurecer uma ideia de reforma tributária. Pode não ser a dos nossos sonhos, mas temos que reduzir a cumulatividade e a regressividade do atual sistema. É passo a passo. Mas volto a dizer: temos que ir tratando de uma coisa de cada vez na Câmara, uma coisa de cada vez no Senado, pois isso nos ajuda a comunicar com a sociedade. Facilita quando a sociedade compreende o passo que estamos dando no sentido de modernizar o país”.

E como manter essa janela aberta em 2020?

“Quanto tempo ela ficará aberta? Não sei. Já está fechando? Também não sei. Depende da paciência da população. Mas ela precisa ser aproveitada. O que não dá é para vir com a desculpa de que ano que vem não é possível avançar porque tem eleições municipais. Eleição municipal,via de regra, trata de tema local: coleta e tratamento de lixo, varrição, educação infantil e fundamental, atendimento primário na área de saúde, alguma coisa de segurança pública, iluminação dos bairros, mobilidade humana, uso e ocupação do solo. Isso mexe com deputados, pois alguns disputam eleições, mas são poucos, não influencia significativamente. E a história mostra que conseguimos aprovar temas importantes em ano de eleições municipais. Então, se a janela permanecer aberta, há como encaixar outros temas estruturais que a sociedade precisa. Acho que temos que defender isso e ajudar para que essas coisas aconteçam. Independentemente de que haja divergências em relação ao tema ambiental, ao tema cultural, à questão do MEC, e assim por diante. Pode haver divergências, mas também apoio as mudanças que o país precisa para melhorar a vida dos brasileiros”.

Do ponto de vista de quem fez ajustes fiscais bem-sucedidos, como vê hoje a situação dos estados que precisam de auxílio para reequilibrar as suas contas? Ainda não tivemos o Plano Mansueto aprovado (para estados com nota C de crédito), o Regime de Recuperação Fiscal está sendo revisto, é há as propostas contidas nas três PECs que compõem o Programa Mais Brasil…

“Ao longo dos mandatos executivos que exerci no Espírito Santo, como prefeito de Vitória (1993-1996), governador por oito anos (2003-2010) e governador por quatro anos (2015-2018) –, em todos fiz ajuste fiscal. É emblemático. E tem de tudo nisso: aumento de servidor em descompasso com a capacidade da receita, benefícios criados, e assim por diante. Tem o conjuntural, mas também o estrutural, com a receita subindo de escada e a despesa de elevador. Desde que assumi a Prefeitura de Vitória eu sei que é preciso ter cuidado para administrar o setor público, porque ele foi desenhado para quebrar. Aí vem a pergunta: isso foi desenhado na Constituinte de 1988? Não só, mas também. Na verdade, o Estado brasileiro foi desenhado ao longo da nossa história como um Estado caro. Você olha no getulismo, no regime militar, a quantidade de penduricalhos e coisas que foram sendo colocadas. E olha a Constituinte, que implantou um regime jurídico único, paridade de servidor inativo com ativo, um conjunto de benefícios que deixava claro que o setor público estava indo em alta velocidade para bater em um muro de pedra. E bateu, por um problema estrutural. Isso tem conserto? Tem. Quem fala é quem já consertou. Mas tem que tratar do estrutural. Um pedaço disso é a reforma da Previdência de estados e municípios que ainda não foi feita – ou pelo Congresso Nacional, ou por assembleias legislativas e câmaras municipais. Essa conta cresce exponencialmente não por desvio ou corrupção, mas fruto de nossa história de compromissos legais. A União corrigiu parcialmente o seu problema com funcionários.

Digo parcialmente porque no caso dos militares, ao invés de corrigir, agravou, infelizmente, para fazer política eleitoral. Mas uma hora isso terá de ser corrigido. O déficit da Previdência compromete a capacidade de investimento, e se você quer avaliar se um órgão está vivo ou morto é verificar sua capacidade de investimento com recursos próprios. No Brasil, o investimento como proporção do PIB desabou de 22{5a95de09593b95e4f7b9f890b710ae9ebd7b4b5f9a97083bff113c3a371bdaf8} para 15{5a95de09593b95e4f7b9f890b710ae9ebd7b4b5f9a97083bff113c3a371bdaf8}, e a maior queda foi do investimento público. Então, essa é uma reforma que precisa ser feita e não foi. Isso é problemático, porque afeta a atividade das pessoas.

As pessoas não moram na União, mas na cidade do Rio, no estado do Espírito Santo, e precisam de provimento de hospitais, unidades de saúde, escolas, transporte coletivo, e por aí vai. Não consertar isso é deixar uma bomba para explodir em algum momento. Quanto mais baixa a renda dos brasileiros, mais dependentes estes ficam dos estados funcionando e entregando. E isso é comprometido por uma estrutura de recursos humanos que concentra renda. Precisamos destravar esse sistema para ter um país com igualdade e oportunidade para todos”.

*Paulo Hartung

Economista, foi deputado estadual, deputado federal, senador, prefeito de Vitória e governador do Espírito Santo.
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